domingo, 31 de janeiro de 2010

Oficina de Contos - Terceira Aula

Oficina de Contos
com José Castello · 10 aulas de 22/9/2008 a 26/9/2008.


Oficina publicada originalmente entre julho e setembro de 2007 no sítio do Portal Literal (www.portalliteral.com.br).

Terceira aula



A duplicidade que se passa "para além da ficção", como se um mistério acenasse para o leitor de fora do conto, e a perigosa fronteira entre a ficção e a vida são alguns dos temas explorados na terceira aula de José Castello.


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O escritor pernambucano Raimundo Carrero gosta de lembrar a conhecida (e aparentemente inútil) fórmula de Mário de Andrade: "Conto é tudo aquilo que a gente chama de conto". A idéia vale também, é claro, para o romance – romance é tudo o que se chama de romance. Volto a Carrero, que é não só um grande romancista, mas também contista. Um romance como A história de Bernarda Soledade, que ele escreveu nos anos 70 e tem pouco mais de cem páginas, pode ser tomado como um conto longo. Ele mesmo admite que, num movimento inverso, seu estupendo romance Sombra severa foi, durante um bom tempo, um conto curto e depois um conto um pouco mais longo. É Carrero, ainda, quem recorda que Gilberto Freyre, cheio de dúvidas para definir seu Bernarda Soledade, safou-se inventando uma nova definição, um novo gênero: "quase novela", ou "meia novela".

A amplitude da fórmula criada por Mário de Andrade, se por um lado confere extrema liberdade aos contistas, de outro lhes tira a segurança e o chão. Se conto é mesmo tudo aquilo que chamamos de conto, de onde um contista deve partir? E mais: o que se espera, exatamente, que um contista escreva? É Carrero quem recorda, ainda, um dos exemplos mais dramáticos dessa fronteira quebradiça (e traiçoeira) entre os gêneros: A metamorfose, o célebre conto longo, ou novela (quase novela), ou mesmo romance breve de Franz Kafka. Pergunto: estaria Kafka interessado nesse problema quando escreveu A metamorfose?

Já disse em aula anterior que o conto, em geral (mas sei o quanto me arrisco com esse "em geral"...), se define pela concentração. Num de seus cadernos de notas, o escritor russo Anton Tchekhov (1860-1904), extraordinário contista, mas também um grande dramaturgo, registra – em palavras secas e brevíssimas, como era de seu estilo – um brevíssimo episódio que lhe inspirou um conto que nunca escreveu. Ele anotou: "Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida".

Leitor apaixonado de Tchekhov, o argentino Ricardo Piglia viu nesse episódio resumido entre cinco vírgulas a síntese – o esqueleto – de um conto clássico. "A forma clássica do conto está condensada no núcleo dessa narração futura e não escrita", ele afirma em seu O laboratório do escritor. Um personagem (um homem), um lugar (Monte Carlo), um destino (vai ao cassino), um evento extraordinário (ganha um milhão), uma solução (volta para casa), um desfecho inesperado (se suicida). E eis um conto.

Mas romances – mesmo os menos ortodoxos dos romances – também não poderiam se encaixar no esquema proposto por Piglia? Fracasso dos esquemas, das fórmulas prontas, das formas... Mas vamos lá. Penso em um de meus romances prediletos (na verdade, um dos livros fundamentais em minha vida de leitor): A paixão segundo G.H., o estranho romance que Clarice Lispector publicou em 1964. Arrisco-me a nele experimentar a fórmula de Tchekhov condensada por Piglia. Um personagem (G.H.), um lugar (sozinha em seu apartamento, depois de demitir a empregada), um destino (vai ao quarto de serviço), um evento extraordinário (mata uma barata e decide comê-la), uma solução (interroga-se sobre aquilo que escapa, aquilo que fica "depois de depois do pensamento"), um desfecho inesperado (experimenta uma espécie mundana de epifania, isto é, de aparição súbita do sagrado).

Piglia observa que, no episódio-síntese rascunhado por Tchekhov, aparece (como já disse em minha Aula 2) o caráter duplo dos contos. Na aparência, a história de alguém que se torna milionário não tem qualquer relação com a história de alguém que se suicida. No entanto, é o mesmo personagem quem faz as duas coisas – enriquece e, ato contínuo e imprevisto, se mata. Aqui fica claro que, sob a história que o leitor lê, em seu interior, uma trama secreta e imperceptível se desenrola – alguma coisa que confere (ou pelo menos promete conferir) um sentido ao episódio.

Não penso, contudo, só no caráter duplo que se desenrola no plano ficcional. Como na aula passada, interessa-me mais ainda a duplicidade que se passa "para além da ficção" – como se uma coisa dessas, na verdade, fosse possível! Como se, para uma ficção, houvesse "algo além". Semana passada, falei do sentido oculto que lateja, sempre, no interior de qualquer narrativa. Alguém já reclamou que o exercício que acompanhou aquela aula, a Aula 2, que eu chamei de Exercício de Duplicação, não corresponde exatamente ao tema exposto. Talvez isso seja verdade. Em minha defesa posso dizer que essas duplicações se passam, em geral, em três planos. Primeiro, como no Exercício de Duplicação, no interior da própria narrativa. Segundo, como na exposição da Aula 2, na esfera do sentido, ou malha de sentidos ocultos que sustentam, mas também desvirtuam, uma narrativa.

Hoje venho falar de um terceiro plano: o da perigosa fronteira entre a ficção e a vida. Dito de outra maneira: a fronteira que separa (mas separa mesmo? ou mistura de modo definitivo?) a imaginação do real. É do que venho tratar hoje – e o Exercício das Metamorfoses, que passo ao fim desta aula, se refere, em particular, a esse plano. Parto não de um conto, mas de um romance, um comovente romance que acabo de ler: O filho eterno, de Cristovão Tezza. Romance? Tezza, que é pai de um rapaz com Síndrome de Down, o gentil Felipe, relata a dura história dessa paternidade – que se mistura à sua dura luta para se tornar o grande escritor que é. É uma história de forte fundo autobiográfico, mas que, apesar disso, guarda a estrutura clássica de um romance. E Tezza, ciente do fio de navalha sobre o qual o escreveu, sustenta corajosamente essa definição: romance.

Outros escritores brasileiros já fizeram experiências aparentemente parecidas. Escreveram relatos de forte estofo autobiográfico, e depois os definiram como romances. Mas não basta definir, não basta aplicar um rótulo a um livro. É preciso que o livro, ainda que tramado sobre laços biográficos, se imponha (sobretudo para o leitor que desconhece esses laços) como uma obra de ficção. Este é o caso de O filho eterno: um leitor distante, ou desatento, poderá lê-lo como pura invenção, e se convencerá de que é pura invenção mesmo. E não perderá nada do que se guarda no livro de Tezza.

Ao ler O filho eterno, pensei logo na definição que o norte-americano Truman Capote deu a seu A sangue frio: "romance de não-ficção". Tezza, contudo, prefere chamar seu livro de "romance brutalmente autobiográfico" e, sem dúvida, com isso cunhou uma expressão talvez menos precisa, mas muito mais forte. O que nos interessa nesta aula, porém, está muito além dessas tentativas de definição de gênero que, na verdade, são sempre um tanto fracassadas. O que nos interessa é pensar que mesmo o mais experimental dos romances, o mais fantástico, o mais inverossímil deles – e não apenas aqueles que evocam a biografia ou a autobiografia – tem sempre um pé fincado no real.

Escrever é sempre distorcer, é provocar uma metamorfose – e aqui começo a explicar o exercício que proponho a vocês hoje, o Exercício das Metamorfoses. Mas é muito importante distinguir logo: distorção não é colocar máscaras, não é "tradução" de uma coisa por outra, não é disfarce. Não é tomar uma coisa por outra, fazer uma metáfora (transferência de campo semântico – raposa por uma pessoa astuta, por exemplo), ou uma metonímia (designar um objeto por outro – copo por bebida, por exemplo). Não é trabalhar com figuras de linguagem, nem é uma questão de estilo. É distorcer mesmo, e a um ponto em que já quase nada mais se reconheça. É tirar, do conhecido, o desconhecido.

Arrancar algo que, a princípio, supomos não só que não está lá, como que não poderia estar lá. Arrancar o inesperado, que nem sempre é agradável, e nunca é o que se imagina. O francês Gustave Flaubert (1821-1880, outro romancista) dizia que escrever é desvelar o "monstro" que se guarda dentro de cada um de nós. O "monstro" é um animal espantoso, assombroso; escrever ficção é, nesse sentido, lidar com o espanto e o assombro. Todo grande relato é enigmático e nos coloca diante de algo que não podemos resolver. Não porque sejamos leitores incapazes ou relapsos, mas porque não suportam mesmo uma solução. Diante do enigma nos interrogamos, e ficamos apenas com a perplexidade das perguntas. No máximo – para seguir uma idéia de Luiz Alfredo García Roza, mais um romancista – arriscamos uma decifração (como os adivinhos, os quiromantes e os leitores de bola de cristal). Quer dizer: chegamos a respostas muito precárias, provisórias e totalmente desprovidas de provas. Entramos na esfera de algo que se aproxima da crença, daí muita gente, num engano brutal, associar a invenção literária à religião.

É o checo Milan Kundera (mais um romancista...) quem nos fala do "despotismo da história". Refere-se à crença (aqui eu prefiro pensar em superstição) segundo a qual toda ficção conta uma história, e que toda história guarda uma transposição de algum modo direta, literal, para o real. Mas a literatura se passa "além" da história. O mais importante em O filho eterno, para voltar ao livro de Cristovão Tezza, está além dos acontecimentos, e isso apesar de todo o livro girar a partir e em torno de um acontecimento atordoante, o nascimento de um filho com Down. Não fosse a maneira inteligente como Tezza relata sua história, isto é, a maneira como circunda e bordeja o real, e o livro não teria a mesma força, isso apesar da força da história que ele se empenha em contar.

Essa transposição que tende ao literal (porque, de fato, nunca chega a ele) resume, de uma forma muito precária, o trabalho de Truman Capote em A sangue frio. Um livro que tem a estrutura de um romance, mas que põe essa estrutura a serviço de uma história real, ou uma história de "não-ficção". A serviço de uma estratégia (diríamos "jornalística") de aproximação do mundo. Já Cristovão Tezza faz coisa bem diferente. Embora parta de um fundo autobiográfico, e não faça nenhum esforço para esconder ou disfarçar isso, Tezza trabalha sobre sua história com um conjunto de ilações, de pensamentos, de meditações que a transportam para uma esfera que vai além da autobiografia. E que, de uma forma direta, mas convincente, a distorcem – isto é, dela fazem uma ficção. A idéia de "não-ficção" só com muito esforço (talvez excessivo) cabe no livro de Tezza. Falar de um "romance brutalmente autobiográfico", como ele mesmo sugere, é uma maneira muito mais eficiente de falar de O filho eterno.

Vocês dirão: esta é uma oficina de contos, mas você só fala de romances. Na verdade, conto e romance compartilham o grande universo da ficção. Embora tenham cânones e tradições distintos, são criações que privilegiam o imaginário e a invenção, e que só de modo muito indireto guardam alguma relação com a verdade. Mesmo num romance como O filho eterno, livro em que o impulso para a autobiografia parece submeter e guiar o autor, essa relação é complexa, não é simples, não é uma relação de equivalências, ou de traduções.

Se lemos um texto não-ficcional como a "Carta ao pai", de Franz Kafka, longa carta que o autor checo escreveu para seu pai no ano de 1919, cinco anos antes de morrer e quando já era um homem adulto de 36 anos de idade, carta que nunca chegou a entregar (na verdade, ele a entregou à mãe, que o protegia do pai, e não ao pai!), entendemos melhor ainda o abismo obscuro de que os ficcionistas tiram suas narrativas. A literatura de Kafka, enigmática e fechada, nada tem de autobiográfica. Ao contrário: ela é uma espécie de cortina, espessa e enigmática, com que Kafka recobre e veda o acesso a si. Mas, como as cortinas, se nos escondemos atrás delas, alguma pista sempre fica: uma sombra, uma forma que se realça discretamente sob o pano, um enrugamento que denuncia uma presença. Assim também nas ficções, em todas as ficções.

Depois da leitura de Carta ao pai, a obra de Franz Kafka, toda ela, incluindo seus três grandes romances (Amérika, O castelo e O processo), pode ser lida de outra maneira – de uma perspectiva radicalmente diferente. Não, não é tão simples: a carta não "explica" a obra. Na verdade, ela nada soluciona. Em vez disso, complica e torna ainda mais intrincada a leitura da mesma obra. Numa palavra simples: enriquece-a. Ela também não é, como alguns querem crer, um conto que se disfarça em correspondência. E no entanto é uma carta que, em vez de constar dos Diários e dos textos confessionais do escritor checo, é sempre editada (e no Brasil também) lado a lado a suas grandes ficções.

Creio que raros livros representam, como Carta ao pai para Franz Kafka, esse papel chave, essa função devastadora. A rigor, toda a obra de Kafka gira em torno da mesma questão. De onde vêm as ficções? Não temos o rastro biológico para seguir, como quando perguntamos de onde vêm as crianças. Na literatura, é tudo muito mais difícil. Não existem respostas, mas só simulações de respostas. Carta ao pai é uma simulação (ou tentativa fracassada) de resposta. Contudo, guarda uma força e uma radicalidade que nos obrigam a reler toda a obra de Kafka de outra maneira.

Porque falei de Franz Kafka, é a partir dele que ofereço meu exercício de hoje.

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