segunda-feira, 15 de março de 2010

OFICINA DE CONTOS - QUARTA AULA

Oficina de Contos com José Castello · 10 aulas de 22/9/2008 a 26/9/2008.
Oficina publicada originalmente entre julho e setembro de 2007 no sítio do Portal Literal (www.portalliteral.com.br).



Quarta aula


A quarta aula de José Castello traz o rigor e a secura da "poesia de pedra" de João Cabral de Melo Neto para ajudar o contista a livrar-se dos clichês. Marianne Moore e Milan Kundera também vêm ao auxílio dos alunos.


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Venho tratar hoje não de um contista, mas de um poeta. Eu sei: parece estranho falar de um poeta em uma oficina de contos. Mas, tenho certeza, isso nos será muito útil. Ocorre-me aqui uma sentença célebre de Gustave Flaubert, o autor de Madame Bovary, um romance-chave na literatura no século 19. Frase que, no meu entender, serve não só ao romancista, mas também ao contista e ao poeta: "Sempre me esforcei para adentrar a alma das coisas". É claro: romances, contos, poemas, cada gênero tem sua história. Histórias que fundam tradições, hábitos, certezas – ainda que precárias certezas. Mas existe alguma coisa que, para além dos gêneros e da história, funda aquilo que chamamos de literatura. Talvez se possa pensar nesse "adentrar a alma" de que Flaubert nos fala.
Lembro de outro grande romancista, o checo Milan Kundera, para quem o romance não é "só mais um gênero literário, um galho entre os galhos de uma só árvore". Com essa afirmação, Kundera luta para afirmar a particularidade do romance – gênero que, a seu ver, não se confunde com qualquer outro. As particularidades do conto e da poesia também podem (e devem) ser afirmadas por contistas e poetas. Nada disso, porém, apaga o lastro comum em que os escritores, de qualquer gênero, trafegam. Escrever, dizia Flaubert, é lutar para penetrar na alma (nos segredos) do mundo. E, para se arriscar a isso, cada escritor deve traçar seu próprio método, escavar seu próprio caminho.

Feitas essas ressalvas, volto a João Cabral de Melo Neto, um poeta numa oficina de contistas. Embora nunca tenha escrito contos, o poeta João Cabral de Melo Neto, com sua estética da secura, do corte e do rigor, pode nos ajudar muito a pensá-los. Poetas, como contistas, são artesãos da palavra, o que já os deixa muito próximos. Além disso, Cabral não foi um poeta qualquer. Foi, antes de tudo, um poeta que lutava para não "fazer poesia", como se diz dos românticos e dos líricos. Queria, em vez disso, e em suas próprias palavras, "despoetizar a poesia". Fazer uma poesia sem poesia – projeto que até hoje, em alguns poetas, provoca grande mal-estar.
Uma "poesia sem poesia": isto é, uma poesia livre de todos os clichês que, por hábito e preguiça, atribuímos à poesia e ao poético. Uma poesia sem adornos, sem exageros, livre dos enfeites e de metáforas, distante o mais possível da retórica. Poesia de pedra, poesia de osso – "poesia de cabra", dela dizia o lírico Vinicius de Moraes –, poesia concreta. Uma poesia dos substantivos e não dos adjetivos. Um duro projeto, que torna a arte do poeta ainda mais difícil mas, também, ainda mais potente. Por que não pensar, roubando a idéia de Cabral, de um "conto sem conto"? Isto é: um conto liberto de todos os clichês, todos os hábitos, todos os vícios normalmente a eles atribuídos.
João Cabral reclamou, muitas vezes, da preguiça e do convencionalismo que a seu ver, em seu tempo (e não hoje?), vigoravam entre os poetas. Todo mundo, de fato, acha que pode escrever poesia, nem que seja um "poema de amor", ou um "poema de homenagem", ou "de despedida". Até nos cartões postais, nos telegramas de aniversário, nas lápides de cemitério, nos apelos da publicidade, nos bolos de casamento identificamos muitas vezes algo que, apressadamente, chamamos de "poesia". Pensa-se, em geral, que basta uma lágrima, ou uma dor de cotovelo, ou a expressão mais forte de um sentimento, para que a poesia, como num passe de mágica, apareça. "O brasileiro em geral não é muito de trabalho", Cabral se lamentava.
O que o poeta desejava afirmar? Que a poesia, ao contrário dos que crêem em Musas, em anjos, ou no poder da inspiração, ou ainda em manifestos estéticos e palavras de ordem que devem ser cumpridos ao pé da letra, é, sempre, o resultado de um imenso esforço e de muita disciplina intelectual. E, sobretudo, de uma arriscada e solitária viagem pessoal. O poeta não "incorpora" a poesia, como um médium. Ela, ao contrário, se faz passo a passo, peça a peça, como um edifício (Cabral sempre se interessou pela arquitetura e pelos arquitetos), ou como uma cadeira. Muito mais que ao médium, ou ao mágico, pensava Cabral, a poesia é obra do artesão.
Mas disciplinar-se não significa, ele dizia, submeter-se a regras alheias. Ao contrário: "Cada pessoa deve encontrar a sua forma rígida para a sua maneira de ser e depois segui-la", disse numa longa conversa com André Pestana. Cada poeta (cada contista, podemos experimentar a troca) deve criar seus próprios limites, sua própria armadura, sua própria estrada, e a eles se aferrar com toda a força. A partir daí, não deve mais abrir mão do caminho que escolheu, por mais difícil que ele venha a ser. Criar suas próprias proibições, seus próprios tabus, seus próprios riscos e depois a eles se submeter com o máximo de rigidez e sem recuar: eis a estratégia do poeta. Mas não basta ser radical, não basta "desejar romper". Cabral – que sempre foi considerado um grande inovador, e a quem as vanguardas literárias, até hoje, estão sempre a citar como um grande mestre – deixou claro, numa entrevista a O Globo, a distância que o separava dos vanguardistas. Resumiu assim: "Aceito a inovação caso ela venha a ser funcional e não como um meio de ser diferente".
Inovar, para Cabral, não era "fazer o novo", mas encontrar um caminho próprio, o mais adequado e mais eficaz, para chegar a um objetivo pessoal. O caráter funcional da inovação – que precisa "funcionar" para de fato ser nova – lhe tira, assim, o verniz glamouroso e escandaloso que tantos atribuem. E lhe confere um caráter mais problemático, que inclui a idéia de eficiência e que tem em vista, sempre, um destino. Claro, a poesia (e a literatura) não serve para nada, então não estamos falando aqui de um caráter utilitário, ou de uma função social. O funcional se refere mais às idéias, aos projetos, e, sobretudo, aos objetivos que cada artista fixa para si. Chegar a si: eis o objetivo, no fim, de todo escritor, poeta, contista, ou romancista.
Lições sábias, penso, também para um contista: decidir aonde quer chegar e depois seguir, com firmeza, por esse caminho, sem arredar o pé, sem ceder ao cansaço ou desânimo, por mais difíceis que sejam os desafios que escolheu para si. Volto aqui à definição de Mario de Andrade que citei em outra aula: "Conto é tudo o que chamamos de conto". O importante não é saber o que é um conto, mas se, uma vez resolvido o que ele é, e cada contista resolve isso a seu modo, cumprir o que se prometeu. Numa antiga entrevista que deu ainda nos anos 60 em Lisboa, Cabral falava de seu descontentamento com o Pégaso, o cavalo que voa, que é considerado o símbolo da poesia. Ao crítico José Carlos de Vasconcelos, do Diário de Lisboa, ele sugeriu: "Nós deveríamos ter como símbolo da poesia não o Pégaso, mas a galinha, ou peru, que são aves que não voam. Para o poeta, o difícil é não voar e o esforço que ele deve fazer é esse".
A galinha: uma ave que cisca e que, em vez de cobiçar grandes vôos, trabalha com a atenção voltada para o chão, para o imediato, para as miudezas, em busca de seu alimento. Contem-se e contenta-se com o menor. Ela é uma boa imagem também para o contista. Vôos exagerados podem levá-lo a perder o rumo e a se dispersar. Mais seguro é se deter no caminho que traçou para si e ali, como uma galinha concentrada na busca de seus farelos, permanecer firme. Mais uma vez Cabral repete: conter-se, conservar-se firmemente agarrado ao chão, endurecer, restringir-se. Nada de vôos inúteis, de divagações tortuosas, de experiências "sublimes", de exageros, de excessos. Nada de grandes elevações, nenhuma nobreza, nenhuma grandiosidade. A poesia (o conto) é um trabalho duro, em que o escritor precisa sujar as mãos.
Cabral propunha uma poesia terra a terra, apegada aos problemas concretos e submissa a estratégias inteligentes – desafios brutos e – sem facilidades, que cada poeta deve traçar para si mesmo. Isso quer dizer: antes de escrever, escolher e fixar os limites da escrita. Erguer normas pessoais – inventar essas normas e depois a elas se submeter. Desenhar os limites de seu destino. Desse modo, a liberdade deixa de ser algo de que nos embebedamos, para se tornar a camisa de força que escolhemos, livremente, vestir. Não leva à embriaguez, mas à atenção. Não leva a "qualquer coisa", mas só à precisão.
Tudo isso vale, e muito, para o contista. Escrever contos não é derramar-se, sem qualquer pudor, no caminho pantanoso das palavras. Não é soltar a imaginação e deixar que ela ferva, que entre em ebulição. Ao contrário: é criar obstáculos e objetivos, rígidos, duros, e fixar com nitidez um destino – ainda que não se chegue a realizá-lo, ainda que nunca se chegue, de fato, até ele. É conter-se. O contista, como o poeta cabralino, precisa saber onde pisa e em que direção caminha. Ainda que essas escolhas se dêem, como em geral acontece, no escuro, e sejam motivadas por razões secretas que lhe escapam, é a elas que o contista deve ser fiel. Apesar de si e apesar da própria ignorância e dos próprios limites, não recuar, não voltar atrás.
Em uma entrevista concedida nos anos 70 à Folha de S. Paulo, João Cabral argumenta: "Se a literatura é problemática é porque ela existe. No dia em que a tivermos burocratizada, com o poeta sentado em uma mesa na função de fazer versos, aí sim a literatura estará morta". O poeta (o contista) não escreve por encomenda, ou para corresponder a padrões, ou para se adaptar a cânones. Não segue as tendências da moda como, por exemplo, a indústria do automóvel, ou os ateliês de costura. Clarice Lispector dizia: "Eu não coso para fora, eu coso para dentro". Logo, não existem modismos, não existem manequins, não existem fitas métricas; a medição é interior.
Serão essas, de fato, escolhas que o poeta (o contista) chega a fazer? Ou, em vez disso, são apenas coisas que se impõem e que, uma vez reconhecidas como partes de sua voz, o levam a se submeter? Nesse caso, e para seguir a pista deixada por João Cabral, o contista não se submete a algo de fora, a um cânone, ou uma palavra de ordem, ou a um guru. Submete-se, antes, a si. Em outras palavras: contém-se. E só ali, naquela prisão pessoal (Cabral poderia pensar nos engradados em que se espremem as galinhas...), que ele arrisca alguns vôos. Vôos pequenos, precisos, em direções claras e com o retorno incluído. Os vôos decisivos. Uma estratégia, sem dúvida, trabalhosa, até porque ela empurra o escritor, qualquer escritor, poeta, contista, romancista, para uma grande solidão intelectual. Em uma entrevista que concedeu nos anos 80, Cabral diz: "Sou um poeta meio marginal, que de certa forma fugiu do lirismo e do romantismo comuns na poesia brasileira". À margem dos grandes movimentos e das grandes ondas, Cabral se isolou em seu caminho, apegou-se ferozmente a sua voz, suportou todas as conseqüências disso, e só por isso se tornou um grande poeta. A estratégia, insisto, serve também para o contista: é no aferrar-se a sua solidão, quando é fiel a si e a mais ninguém, que um contista se afirma.
Faz parte desse retorno ao essencial o apego de João Cabral não só à Espanha, mas à literatura espanhola. Cabral disse certa vez ao crítico e poeta Antonio Carlos Secchin: "A literatura espanhola usa preponderantemente o concreto e por isso me interessou. As literaturas primitivas me interessam. Parece que a linguagem começou pelas palavras concretas". Este retorno às "coisas que são", que Cabral cultivou na árida paisagem espanhola, é uma lição estupenda também para o contista. Também o contista pratica um gênero que tende ao compacto, e que em geral se centra em um só tempo e em uma só ação, que se prende a poucos personagens, que se aferra a uma história com a obstinação de contá-la até o fim – e mais nada. O contista, em geral (mas como é perigoso o geral!), não se interessa pelo adorno, pela divagação, pela meditação. Ele tem uma história a relatar, um relato a resolver, e escreve para resolvê-lo. Cabral recorda as literaturas primitivas – os contos de fadas, as lendas, as gestas, o cancioneiro medieval – em que o objetivo era apenas um: contar uma história. Exemplos que remetem a uma idéia decisiva: a de contenção. Conter-se: este deve ser o principal exercício de um contista. Agarrar seu projeto, ater-se a ele, restringir-se, exigindo de si mesmo nitidez e rigor.
O Exercício de Contenção que hoje proponho a vocês se inspira não só, nas lições de João Cabral de Melo Neto, mas também nos versos de outra grande poeta, que admiro muito, a norte-americana Marianne Moore. Uma poeta que, Cabral declarou mais de uma vez, foi decisiva em sua formação literária. São estes os versos de Marianne, que estão no fecho do poema "Silêncio", aqui em tradução de José Antonio Arantes: "O sentimento mais profundo sempre se mostra em silêncio; não em silêncio, mas contenção".
A palavra inglesa aqui traduzida como "contenção", "restraint", pode ser traduzida também por restrição, limitação, ou controle – três outras idéias que servem bastante a nosso propósito. Pois são restrição, limitação e controle que ajudam a formar não só um poeta, mas um contista.

domingo, 31 de janeiro de 2010

Oficina de Contos - Terceira Aula

Oficina de Contos
com José Castello · 10 aulas de 22/9/2008 a 26/9/2008.


Oficina publicada originalmente entre julho e setembro de 2007 no sítio do Portal Literal (www.portalliteral.com.br).

Terceira aula



A duplicidade que se passa "para além da ficção", como se um mistério acenasse para o leitor de fora do conto, e a perigosa fronteira entre a ficção e a vida são alguns dos temas explorados na terceira aula de José Castello.


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O escritor pernambucano Raimundo Carrero gosta de lembrar a conhecida (e aparentemente inútil) fórmula de Mário de Andrade: "Conto é tudo aquilo que a gente chama de conto". A idéia vale também, é claro, para o romance – romance é tudo o que se chama de romance. Volto a Carrero, que é não só um grande romancista, mas também contista. Um romance como A história de Bernarda Soledade, que ele escreveu nos anos 70 e tem pouco mais de cem páginas, pode ser tomado como um conto longo. Ele mesmo admite que, num movimento inverso, seu estupendo romance Sombra severa foi, durante um bom tempo, um conto curto e depois um conto um pouco mais longo. É Carrero, ainda, quem recorda que Gilberto Freyre, cheio de dúvidas para definir seu Bernarda Soledade, safou-se inventando uma nova definição, um novo gênero: "quase novela", ou "meia novela".

A amplitude da fórmula criada por Mário de Andrade, se por um lado confere extrema liberdade aos contistas, de outro lhes tira a segurança e o chão. Se conto é mesmo tudo aquilo que chamamos de conto, de onde um contista deve partir? E mais: o que se espera, exatamente, que um contista escreva? É Carrero quem recorda, ainda, um dos exemplos mais dramáticos dessa fronteira quebradiça (e traiçoeira) entre os gêneros: A metamorfose, o célebre conto longo, ou novela (quase novela), ou mesmo romance breve de Franz Kafka. Pergunto: estaria Kafka interessado nesse problema quando escreveu A metamorfose?

Já disse em aula anterior que o conto, em geral (mas sei o quanto me arrisco com esse "em geral"...), se define pela concentração. Num de seus cadernos de notas, o escritor russo Anton Tchekhov (1860-1904), extraordinário contista, mas também um grande dramaturgo, registra – em palavras secas e brevíssimas, como era de seu estilo – um brevíssimo episódio que lhe inspirou um conto que nunca escreveu. Ele anotou: "Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida".

Leitor apaixonado de Tchekhov, o argentino Ricardo Piglia viu nesse episódio resumido entre cinco vírgulas a síntese – o esqueleto – de um conto clássico. "A forma clássica do conto está condensada no núcleo dessa narração futura e não escrita", ele afirma em seu O laboratório do escritor. Um personagem (um homem), um lugar (Monte Carlo), um destino (vai ao cassino), um evento extraordinário (ganha um milhão), uma solução (volta para casa), um desfecho inesperado (se suicida). E eis um conto.

Mas romances – mesmo os menos ortodoxos dos romances – também não poderiam se encaixar no esquema proposto por Piglia? Fracasso dos esquemas, das fórmulas prontas, das formas... Mas vamos lá. Penso em um de meus romances prediletos (na verdade, um dos livros fundamentais em minha vida de leitor): A paixão segundo G.H., o estranho romance que Clarice Lispector publicou em 1964. Arrisco-me a nele experimentar a fórmula de Tchekhov condensada por Piglia. Um personagem (G.H.), um lugar (sozinha em seu apartamento, depois de demitir a empregada), um destino (vai ao quarto de serviço), um evento extraordinário (mata uma barata e decide comê-la), uma solução (interroga-se sobre aquilo que escapa, aquilo que fica "depois de depois do pensamento"), um desfecho inesperado (experimenta uma espécie mundana de epifania, isto é, de aparição súbita do sagrado).

Piglia observa que, no episódio-síntese rascunhado por Tchekhov, aparece (como já disse em minha Aula 2) o caráter duplo dos contos. Na aparência, a história de alguém que se torna milionário não tem qualquer relação com a história de alguém que se suicida. No entanto, é o mesmo personagem quem faz as duas coisas – enriquece e, ato contínuo e imprevisto, se mata. Aqui fica claro que, sob a história que o leitor lê, em seu interior, uma trama secreta e imperceptível se desenrola – alguma coisa que confere (ou pelo menos promete conferir) um sentido ao episódio.

Não penso, contudo, só no caráter duplo que se desenrola no plano ficcional. Como na aula passada, interessa-me mais ainda a duplicidade que se passa "para além da ficção" – como se uma coisa dessas, na verdade, fosse possível! Como se, para uma ficção, houvesse "algo além". Semana passada, falei do sentido oculto que lateja, sempre, no interior de qualquer narrativa. Alguém já reclamou que o exercício que acompanhou aquela aula, a Aula 2, que eu chamei de Exercício de Duplicação, não corresponde exatamente ao tema exposto. Talvez isso seja verdade. Em minha defesa posso dizer que essas duplicações se passam, em geral, em três planos. Primeiro, como no Exercício de Duplicação, no interior da própria narrativa. Segundo, como na exposição da Aula 2, na esfera do sentido, ou malha de sentidos ocultos que sustentam, mas também desvirtuam, uma narrativa.

Hoje venho falar de um terceiro plano: o da perigosa fronteira entre a ficção e a vida. Dito de outra maneira: a fronteira que separa (mas separa mesmo? ou mistura de modo definitivo?) a imaginação do real. É do que venho tratar hoje – e o Exercício das Metamorfoses, que passo ao fim desta aula, se refere, em particular, a esse plano. Parto não de um conto, mas de um romance, um comovente romance que acabo de ler: O filho eterno, de Cristovão Tezza. Romance? Tezza, que é pai de um rapaz com Síndrome de Down, o gentil Felipe, relata a dura história dessa paternidade – que se mistura à sua dura luta para se tornar o grande escritor que é. É uma história de forte fundo autobiográfico, mas que, apesar disso, guarda a estrutura clássica de um romance. E Tezza, ciente do fio de navalha sobre o qual o escreveu, sustenta corajosamente essa definição: romance.

Outros escritores brasileiros já fizeram experiências aparentemente parecidas. Escreveram relatos de forte estofo autobiográfico, e depois os definiram como romances. Mas não basta definir, não basta aplicar um rótulo a um livro. É preciso que o livro, ainda que tramado sobre laços biográficos, se imponha (sobretudo para o leitor que desconhece esses laços) como uma obra de ficção. Este é o caso de O filho eterno: um leitor distante, ou desatento, poderá lê-lo como pura invenção, e se convencerá de que é pura invenção mesmo. E não perderá nada do que se guarda no livro de Tezza.

Ao ler O filho eterno, pensei logo na definição que o norte-americano Truman Capote deu a seu A sangue frio: "romance de não-ficção". Tezza, contudo, prefere chamar seu livro de "romance brutalmente autobiográfico" e, sem dúvida, com isso cunhou uma expressão talvez menos precisa, mas muito mais forte. O que nos interessa nesta aula, porém, está muito além dessas tentativas de definição de gênero que, na verdade, são sempre um tanto fracassadas. O que nos interessa é pensar que mesmo o mais experimental dos romances, o mais fantástico, o mais inverossímil deles – e não apenas aqueles que evocam a biografia ou a autobiografia – tem sempre um pé fincado no real.

Escrever é sempre distorcer, é provocar uma metamorfose – e aqui começo a explicar o exercício que proponho a vocês hoje, o Exercício das Metamorfoses. Mas é muito importante distinguir logo: distorção não é colocar máscaras, não é "tradução" de uma coisa por outra, não é disfarce. Não é tomar uma coisa por outra, fazer uma metáfora (transferência de campo semântico – raposa por uma pessoa astuta, por exemplo), ou uma metonímia (designar um objeto por outro – copo por bebida, por exemplo). Não é trabalhar com figuras de linguagem, nem é uma questão de estilo. É distorcer mesmo, e a um ponto em que já quase nada mais se reconheça. É tirar, do conhecido, o desconhecido.

Arrancar algo que, a princípio, supomos não só que não está lá, como que não poderia estar lá. Arrancar o inesperado, que nem sempre é agradável, e nunca é o que se imagina. O francês Gustave Flaubert (1821-1880, outro romancista) dizia que escrever é desvelar o "monstro" que se guarda dentro de cada um de nós. O "monstro" é um animal espantoso, assombroso; escrever ficção é, nesse sentido, lidar com o espanto e o assombro. Todo grande relato é enigmático e nos coloca diante de algo que não podemos resolver. Não porque sejamos leitores incapazes ou relapsos, mas porque não suportam mesmo uma solução. Diante do enigma nos interrogamos, e ficamos apenas com a perplexidade das perguntas. No máximo – para seguir uma idéia de Luiz Alfredo García Roza, mais um romancista – arriscamos uma decifração (como os adivinhos, os quiromantes e os leitores de bola de cristal). Quer dizer: chegamos a respostas muito precárias, provisórias e totalmente desprovidas de provas. Entramos na esfera de algo que se aproxima da crença, daí muita gente, num engano brutal, associar a invenção literária à religião.

É o checo Milan Kundera (mais um romancista...) quem nos fala do "despotismo da história". Refere-se à crença (aqui eu prefiro pensar em superstição) segundo a qual toda ficção conta uma história, e que toda história guarda uma transposição de algum modo direta, literal, para o real. Mas a literatura se passa "além" da história. O mais importante em O filho eterno, para voltar ao livro de Cristovão Tezza, está além dos acontecimentos, e isso apesar de todo o livro girar a partir e em torno de um acontecimento atordoante, o nascimento de um filho com Down. Não fosse a maneira inteligente como Tezza relata sua história, isto é, a maneira como circunda e bordeja o real, e o livro não teria a mesma força, isso apesar da força da história que ele se empenha em contar.

Essa transposição que tende ao literal (porque, de fato, nunca chega a ele) resume, de uma forma muito precária, o trabalho de Truman Capote em A sangue frio. Um livro que tem a estrutura de um romance, mas que põe essa estrutura a serviço de uma história real, ou uma história de "não-ficção". A serviço de uma estratégia (diríamos "jornalística") de aproximação do mundo. Já Cristovão Tezza faz coisa bem diferente. Embora parta de um fundo autobiográfico, e não faça nenhum esforço para esconder ou disfarçar isso, Tezza trabalha sobre sua história com um conjunto de ilações, de pensamentos, de meditações que a transportam para uma esfera que vai além da autobiografia. E que, de uma forma direta, mas convincente, a distorcem – isto é, dela fazem uma ficção. A idéia de "não-ficção" só com muito esforço (talvez excessivo) cabe no livro de Tezza. Falar de um "romance brutalmente autobiográfico", como ele mesmo sugere, é uma maneira muito mais eficiente de falar de O filho eterno.

Vocês dirão: esta é uma oficina de contos, mas você só fala de romances. Na verdade, conto e romance compartilham o grande universo da ficção. Embora tenham cânones e tradições distintos, são criações que privilegiam o imaginário e a invenção, e que só de modo muito indireto guardam alguma relação com a verdade. Mesmo num romance como O filho eterno, livro em que o impulso para a autobiografia parece submeter e guiar o autor, essa relação é complexa, não é simples, não é uma relação de equivalências, ou de traduções.

Se lemos um texto não-ficcional como a "Carta ao pai", de Franz Kafka, longa carta que o autor checo escreveu para seu pai no ano de 1919, cinco anos antes de morrer e quando já era um homem adulto de 36 anos de idade, carta que nunca chegou a entregar (na verdade, ele a entregou à mãe, que o protegia do pai, e não ao pai!), entendemos melhor ainda o abismo obscuro de que os ficcionistas tiram suas narrativas. A literatura de Kafka, enigmática e fechada, nada tem de autobiográfica. Ao contrário: ela é uma espécie de cortina, espessa e enigmática, com que Kafka recobre e veda o acesso a si. Mas, como as cortinas, se nos escondemos atrás delas, alguma pista sempre fica: uma sombra, uma forma que se realça discretamente sob o pano, um enrugamento que denuncia uma presença. Assim também nas ficções, em todas as ficções.

Depois da leitura de Carta ao pai, a obra de Franz Kafka, toda ela, incluindo seus três grandes romances (Amérika, O castelo e O processo), pode ser lida de outra maneira – de uma perspectiva radicalmente diferente. Não, não é tão simples: a carta não "explica" a obra. Na verdade, ela nada soluciona. Em vez disso, complica e torna ainda mais intrincada a leitura da mesma obra. Numa palavra simples: enriquece-a. Ela também não é, como alguns querem crer, um conto que se disfarça em correspondência. E no entanto é uma carta que, em vez de constar dos Diários e dos textos confessionais do escritor checo, é sempre editada (e no Brasil também) lado a lado a suas grandes ficções.

Creio que raros livros representam, como Carta ao pai para Franz Kafka, esse papel chave, essa função devastadora. A rigor, toda a obra de Kafka gira em torno da mesma questão. De onde vêm as ficções? Não temos o rastro biológico para seguir, como quando perguntamos de onde vêm as crianças. Na literatura, é tudo muito mais difícil. Não existem respostas, mas só simulações de respostas. Carta ao pai é uma simulação (ou tentativa fracassada) de resposta. Contudo, guarda uma força e uma radicalidade que nos obrigam a reler toda a obra de Kafka de outra maneira.

Porque falei de Franz Kafka, é a partir dele que ofereço meu exercício de hoje.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

OFICINA DE CONTOS - segunda aula

Oficina de Contos
com José Castello · 10 aulas de 22/9/2008 a 26/9/2008.


Oficina publicada originalmente entre julho e setembro de 2007 no sítio do Portal Literal (www.portalliteral.com.br).

Segunda aula



José Castello analisa três contos de Machado de Assis – "A cartomante", "O espelho" e "Pai contra mãe" – e uma conversa com Bernardo Carvalho, além de oferecer preciosas dicas baseadas na experiência de Julio Cortázar, Nicolai Gogol e Clarice Lispector. O mestre também propõe um “exercício de duplicação”.

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O escritor argentino Ricardo Piglia costuma dizer que um conto relata sempre uma história, enquanto na verdade conta outra. A idéia é incorporada por Bernardo Carvalho em seu romance mais recente, O sol se põe em São Paulo quando, logo no início do capítulo 3, seu narrador reflete: "A literatura é o que não se vê. A literatura se engana. Enquanto os escritores escrevem, as histórias acontecem em outro lugar".

As idéias de Piglia e de Bernardo ajudam a pensar o caráter duplicado e secreto do conto. Narrativas curtas, compactas, com grande economia de personagens e de acontecimentos, os contos costumam ser tomados, erradamente, como "ficções simples". Como se fossem, apenas, esboços, ou reduções de romances potenciais. Este engano leva muitos leitores, e também – o que é mais grave – escritores, a desprezar o conto, ou a tratá-lo como uma aventura literária menor.

É através da aparente simplicidade que o conto, em geral, ilude, arrasta e prende o leitor. O conto é, podemos pensar grosseiramente, a arte do mínimo. Com um mínimo de recursos, de elementos, de personagens e de linhas, ele narra uma falsa pequena história para, através dela, abrir um abismo aos pés do leitor. Para testar essa hipótese (que, é claro, muitos contos extraordinários desmentem, pois escrever é desviar-se e desmentir), parto, hoje, de três contos, estupendos contos, de Machado de Assis: "A cartomante", "O espelho" e "Pai contra mãe".

Um leitor apressado dirá que "A cartomante" é a história clássica de um triângulo amoroso, no caso entre Rita, Vilela e Camilo. Não deixa de ser verdade – mas reduzir o conto de Machado a isso é menosprezar o que ele tem de mais importante. Machado explora em seu conto, sim, clássicos aspectos psicológicos: a ansiedade de Camilo, as dúvidas e temores de Vilela (que o escritor levou ao extremo, no romance, em Dom Casmurro, com o triângulo Bentinho, Escobar e Capitu), o amor escorregadio de Rita.

Mais que esses eventos psicológicos, contudo, o que está em jogo em "A cartomante" é a relação do homem com o desconhecido, que se sintetiza na figura da adivinha. A possibilidade (ou sonho) de antevisão do futuro, as superstições a respeito das intenções ocultas que regem as coisas, o poder (ou a impotência) humana para manipular o destino, a presença secreta do mistério nas miudezas da vida cotidiana são temas que, numa corrente paralela, sustentam secretamente o relato.

Deparamos, nesse conto, com a grandeza de Machado: como quem não quer nada, narrando histórias comuns e até banais, com personagens que se deixam envolver pelo previsível e que se doam ingenuamente aos apelos e seduções mais vulgares, ele põe seu leitor frente a frente com algumas das mais difíceis questões da existência humana. É no particular, e é ao encontrar uma maneira inconfundível de tratar esse particular, que Machado de Assis se aproxima das forças secretas que animam nossa vida. Forças que ele esconde no cenário banal do consultório de uma cartomante, um lugar em que se decide, na verdade, não o destino humano, mas nossa impotência diante desse destino.

Machado faz algo muito parecido, e talvez ainda mais atordoante, em "O espelho". O escritor deu a seu conto um subtítulo: "Esboço de uma nova teoria da alma humana". Trata-se do relato de uma história vivida por João, um homem de 45 anos, um "capitalista inteligente" que descobriu que não temos só uma alma, a interior, mas, na verdade, temos duas: temos também uma alma exterior. "Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro", ele relata a quatro companheiros que o ouvem, à luz de velas, em uma casa de Santa Tereza, no Rio.

O conto é o relato do modo doloroso como fez essa descoberta, duas décadas antes, quando era um rapaz de 25 anos. Para orgulho da família, mas também para desconfiança dos amigos, acabara de ser nomeado alferes da guarda nacional. Emocionada, uma tia viúva, moradora em um sítio solitário, o convida para passar alguns dias com ela. Mas não é o sobrinho que recebe, e sim o alferes. Em vez de chamá-lo de Joãozinho, como sempre fez, só o chama de "o senhor alferes". Enche-o de gentilezas. Entrega-lhe, ainda, um presente, um antigo espelho, trazido ao Brasil pela corte de D. João VI, que dependura na parede de seu quarto de hóspede.

O rapaz se envaidece com tantas atenções. A tia exige, em contrapartida, que ele ande sempre com sua roupa de alferes. Atende ao pedido, mas logo depois compreende que, com tudo isso, "o alferes eliminou o homem". Ele relata: "No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes". O alferes era sua alma exterior – que podia se encarnar, também, em par de botas, uma ópera, ou um chocalho de criança, pois a alma exterior, diz, pode exibir qualquer aparência, pode ser ligar a qualquer coisa. Essa alma exterior havia aniquilado sua alma interior e era agora tudo o que lhe restava.

Súbito, a tia é obrigada a partir para amparar uma filha enferma. Os escravos, logo em seguida, abandonam a casa. O alferes fica sozinho no sítio. É tomado, então, por um insuportável vazio. Um dia, em plena crise, resolve se observar no espelho: tudo o que vê é uma imagem turva, difusa, em franca decomposição, do homem que já foi, ou que julgava ainda ser. Essa imagem só recobra a nitidez quando lhe ocorre vestir a farda de alferes. Entende, então, que tudo o que lhe sobrou é a alma exterior, incorporada naquela vestimenta militar. A alma interior, que se refere a seus aspectos humanos, foi por ela devorada.

"O espelho" é um conto filosófico. A idéia das duas almas, que a princípio parece absurda, mostra-se hoje, um século depois, incrivelmente atual. Vivemos em um mundo de duplicações, de clones e de virtualidade. Um mundo em que as pessoas costumam ser reduzidas a títulos, a contas correntes, a imagens na mídia, a currículos, a crachás. A "alma exterior" dá as cartas num mundo que se define pela superfície e pela velocidade e que tem horror à profundidade e à lentidão. Pensando assim, um século depois, espanta a sensibilidade de Machado. Sensibilidade que, se nos deixarmos levar pela figura sedutora da cartomante, se aproxima da premonição.

Mas essa duplicação narrativa guarda um segundo aspecto que, de modo sutil, mas insistente, está presente em toda a literatura de Machado. A segunda alma – como a da mulher que só pensava nas estações de ópera lírica e, depois, passa a só pensar nos bailes da rua do Ouvidor – fala das obsessões. Obsessões, idéias fixas, manias, paixões. Fala, portanto, de modo muito sutil e secreto, da própria literatura, que é, sempre, ao menos quando se escreve para valer, efeito de paixão. Eis aí a matéria prima dos escritores: a obsessão em escrever. Contra tudo, contra todos e apesar de tudo, continuar a escrever. Falei de Bernardo Carvalho: recentemente o ouvi afirmar que a literatura é, para ele, a coisa mais importante, "mais importante que tudo". Escritores radicais – penso em João Gilberto Noll, para ficar em outro brilhante escritor contemporâneo – adotam a literatura como uma espécie de sacerdócio. Uma coisa que está acima de todas as outras. Na mesma conversa, ouvi Bernardo dizer ainda: "A literatura é a minha religião". Apontava assim a "segunda alma" de que Machado fala em seu conto, alma que existe mesmo para aqueles que, como Bernardo, se declaram ateus – ou seja, não acreditam na existência da primeira.

Escritores costumam se deter longamente na reflexão sobre esse "massacre". Algo que aparentemente vem de fora, a literatura (mas vem mesmo?), o invade e ocupa um lugar privilegiado em seu interior. No entanto – e eis a lição que Machado nos dá em "O espelho" – a literatura não é filosofia, nem é teoria literária, ou ensaio sociológico. Literatura é literatura e apenas isso – e tudo isso. Machado trabalha idéias, idéias difíceis, densas, imprecisas, perigosas, usando exclusivamente o instrumento delicado da narração. Com isso, não fecha, não "soluciona", não bloqueia o pensamento, não conclui; ao contrário, abre novos caminhos, descerra novas perspectivas e nos oferece novas maneiras de pensar e de ver. Dizia João Cabral: a literatura "dá a ver".

O argentino Julio Cortázar, mestre do conto – de quem já falei na oficina anterior – rememorou, um dia, em entrevista a Ernesto Bermejo, sua tendência para criar personagens super-intelectuais, sujeitos "que especulassem com muita inteligência sobre certos problemas metafísicos". Só conseguiu vencer esse vício, que bloqueava sua escrita, quando decidiu "seguir o caminho inverso, construir um personagem assimilável ao homem da rua". É a arte de Nicolai Gogol em seu O capote. É o que faz Robert Musil mesmo em um romance monumental como O homem sem qualidades. É o que faz Graciliano Ramos ao criar Luis da Silva, o atordoado e frágil protagonista de Angústia. É o que Cortázar faz em seus magníficos contos.

Penso no terceiro conto de Machado que propus a vocês: "Pai contra mãe". Ele começa em tom circunspeto, distanciado, quase professoral, de ensaio, ou estudo histórico. Os cinco primeiros parágrafos mais parecem uma lição de história social, que rememora os ofícios e aparelhos ligados à antiga escravidão, entre eles o ofício de perseguidor de escravos fujões. Só no sexto parágrafo Machado, enfim, nos introduz na história de Cândido Neves, de seu amor por Clara e de suas imensas dificuldades com o trabalho e a sobrevivência. Impasses que tenta resolver adotando o ofício de perseguidor de escravos em fuga.

Clara tem uma tia, Mônica, mulher austera que, depois de criá-la, vigia de perto seu amor por Cândido. A vida do casal é dura, o ofício de caçador de escravos é instável e Clara tem que se desdobrar cosendo para fora. Engravida, tem o bebê, mas o casal é despejado dias depois. A situação se agrava e a tia, pensando no recém nascido, convence-os a entregar o bebê à Roda dos enjeitados – instituição que abriga crianças desamparadas.

Cândido se recusa, mas, enfim, pressionado pela miséria, aceita os argumentos da tia. Pega o bebê, mas, no caminho, cruza na rua com uma escrava fujona em troca de quem se promete um excelente dinheiro. Deixa a criança numa farmácia, sai atrás da mulher e consegue pegá-la; ela se desdobra em lamúrias e pede piedade não por ela, mas pela criança que carrega na barriga. Cheio de fúria, e mesmo assim, Cândido ignora seus apelos e a entrega aos seus donos. Na luta para fugir, ela aborta – e o filho morto salva o filho de Cândido.

Na aparência, Machado escreveu um relato social, que aborda a miséria e o desespero, relato que vem adornado por algumas pinceladas de análise dos costumes. Mas será só isso? "Pai contra mãe" trata, mais que isso, da divisão em que todo ser humano se funda, abismo sobre o qual todos existimos. Contudo, em vez de teorizar, ou mesmo de construir teorias fantasiosas como em "O espelho", Machado aferra-se unicamente aos fatos, e apenas a eles, para escrever uma história ela também, afinal, comum. Que, no entanto, carrega em seu interior (como a escrava grávida) questões e impasses que vão muito além dela. A cisão interior do homem, sua animalidade, o modo como o desespero pode massacrar alguém, a aflição extrema que nos leva aos atos mais repulsivos são questões que latejam no interior de "Pai contra mãe". E que, de certa forma, ultrapassam a história que lemos ou que, pelo menos, a duplicam.

Para falar de uma coisa, Machado fala de outra. Para pensar sobre uma coisa, nos leva a pensar – e a "ver" – outra. É nas entrelinhas, como dizia Clarice Lispector, que a literatura se escreve. Jogamos a isca – a narrativa literal. Mas, quando essa isca fisga o que realmente interessa, dela já não podemos nos livrar, porque isca e coisa se misturaram. Essa mistura entre o que se diz e o que não se diz, o que se pensa e o que não se pensa, o que se escreve e o que não se escreve é, enfim, a literatura.

sábado, 17 de outubro de 2009

OFICINA DE CONTOS - Primeira Aula

OFICINA DE CONTOS

com José Castello - 10 aulas de 22/9/2008 a 26/9/2008.

Oficina publicada originalmente entre julho e setembro de 2007 no sítio do Portal Literal (www.portalliteral.com.br).

PRIMEIRA AULA

Em sua primeira aula, José Castello destaca que cada conto oferece, secretamente, sua própria definição do que é um conto. E propõe um exercício surpreendente.

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Diz o dicionário que o conto é uma narrativa breve e concisa, que apresenta unidade dramática e tem a ação concentrada em um único ponto de interesse. A definição sintetiza as idéias mais comuns que cercam, como velhas superstições, o conceito de conto. Não traz uma regra, uma norma, não é um dogma: mas é, ainda assim, um bom ponto de partida. E, como todo ponto de partida, existe não para que nele estacionemos, mas para que o superemos.
A palavra conto vem de "conputus", do latim, que, entre outros significados, guarda o sentido de "cálculo". De fato, na arte de escrever contos existe muito de perícia, de busca de rigor e precisão, de luta contra o excesso e o supérfluo. É claro, cada autor estabelece seus próprios objetivos, fixa suas próprias fronteiras e lida com suas próprias idéias a respeito do que escreve. Os contos de Machado de Assis, como "A cartomante", ou "A mulher de preto", não se parecem com um conto célebre do argentino Júlio Cortázar, como "O perseguidor". Ambos se distanciam muito de uma fábula de Esopo, como "A raposa e as uvas", dos relatos de Charles Perrault, como "O barba azul", e também de qualquer uma das cem narrativas guardadas no Decamerão, de Boccaccio. Ainda assim, todos costumam ser chamados, genericamente, de contos.
Em resumo: cada escritor deve criar e fixar sua própria definição de conto. Pouco servem as explicações ligeiras, como a idéia de que o conto é, por regra, uma narrativa curta. O mais importante conto de Cortázar, "O perseguidor", tem cerca de 70 páginas. Tem quase o mesmo tamanho, por exemplo, que O quieto animal da esquina, um dos romances (ou novelas) do gaúcho João Gilberto Noll. A via das medições é muito perigosa. Há sempre muito de arbitrário quando se diz que "O perseguidor" é um conto e O quieto animal da esquina, ao contrário, é um romance.
Em um livro famoso, Assim se escreve um conto, o escritor argentino Mempo Giardinelli, depois de admitir que o conto é "indefinível", ainda assim arrisca algumas definições. Conto seria o relato de uma breve série de incidentes – assim como, no interior brasileiro, se contam "causos", um sinônimo de conto. O conto seria uma história acabada e perfeita, como num círculo, do qual o supérfluo está excluído. Ou ainda: conto seria um relato em que o argumento, o assunto e os incidentes são fundamentais – e, nesse caso, os contos se interessariam apenas "pelo que está acontecendo", e nada mais. São definições precárias, que podem ser desmentidas com facilidade. Muitos contos famosos, como o "William Wilson", de Edgar Alan Poe, e "O Horla", de Guy de Maupassant, atribuem tanto valor às atmosferas quanto aos eventos, o que desmente a primeira definição. Os contos do argentino Jorge Luis Borges, como os célebres "As Kenningar" e "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius", são muito mais exercícios intelectuais do que relatos factuais, e desmentem a segunda. Um conto filosófico como "O ovo e a galinha", que Clarice Lispector apresentou no I Congresso Mundial de Bruxaria, desmente a terceira. Talvez se possa pensar, a favor das definições, que elas são criadas justamente para serem desmentidas e mesmo traídas. Para servirem de baliza, de referência – como as faixas luminosas nas estradas escuras. Isso, contudo, não facilita as coisas para quem escreve. O conto continua a ser um problema que cada escritor precisa resolver a seu modo. Na verdade, cada conto oferece, secretamente, a sua própria definição de conto.
O que define o conto, se é que, depois do Modernismo ele ainda suporta definições, é, acreditam alguns, a tendência à concentração. Podemos pensar nos relatos contidos nas Mil e uma noites, o grande clássico da literatura árabe, reunião, na verdade, de 1001 contos. Cada uma das histórias se basta. Nelas se concentram um número limitado de personagens, se desenrolam um pequeno número de eventos, em geral reunidos no mesmo lugar e no mesmo tempo. Há, no conto, uma tendência à forte economia de recursos. A convergência dos vários elementos em jogo para um mesmo foco, de alguma forma muito precária, ajuda a definir o conto. Os magníficos contos do escocês Robert Louis Stevenson, como "O ladrão de cadáveres", viriam confirmar isso.
Mas, como sustentar essa idéia a respeito do conto diante dos densos e delicados relatos de Gustave Flaubert, como o célebre "Uma alma simples"? Narrativas como "O capote" e "O nariz", do russo Nicolai Gogol, devem receber a definição de contos? E, se não são contos, o que são? Pense-se em Clarice Lispector. Relatos breves como "Feliz aniversário", ou "O crime do professor de matemática" suportam, sem grandes dificuldades, a definição de conto. Mas, nos livros de contos de Clarice, encontramos narrativas complexas e misteriosas, como "O ovo e a galinha" e "O relatório da coisa". Serão mesmo contos, só porque estão guardadas em livros de contos? Há quem afirme que alguns dos relatos breves de Clarice, como "O relatório da coisa", sequer fazem parte da literatura – pertenceriam, mais, à filosofia. Clarice se irritava com essas tentativas de classificação. Sabia que classificações costumam servir, quase sempre, como mordaças – ou como muletas para esconder a preguiça dos classificadores. O argentino Adolfo Bioy Casares, ainda que sempre fascinado pela força das histórias, ajudou a explodir a idéia do conto, emprestando a seus relatos breves uma complexidade que, em geral, só se espera dos romances. Contos como "A serva alheia" serão mesmo contos? Se acreditarmos piamente no que dizem os manuais de literatura, talvez não seja possível afirmar isso. Contudo, é claro que são contos, e não só isso, mas alguns dos mais magníficos contos já escritos.
Há ainda a idéia corrente de que o conto ou guarda um mistério – como nos "contos de mistério" e nos "contos de terror" – ou bem guarda um enigma. No primeiro caso, do mistério, há sempre uma expectativa de solução, de desvendamento, de fecho esclarecedor. Nesse sentido, e apesar da extensão, os romances policiais da inglesa Agatha Christie seriam, na verdade, contos. No segundo caso, do enigma, privilegiam-se em geral as atmosferas, as reflexões psicológicas, as meditações. Escritores fabulosos como Anton Tchekhov, o autor de "A dama e o cachorrinho", radicalizaram essa opção pelo realismo intimista. "Onde está marcada a cruz", a peça do norte-americano Eugene O'Neill, por exemplo, cumpre com muito mais rigor os preceitos clássicos dos contos do que grande parte das narrativas que ostentam esse nome. São clichês, forças do hábito, comodidades que, no fim, examinam o conto só na superfície, mais em busca das semelhanças, do que em busca daquilo que realmente importa: sua marca original. Não custa lembrar que a literatura é, antes de tudo, o terreno do particular – e os contos, é claro, não ficam de fora disso. Hoje muitos escritores praticam o conto mais realista, que se aproxima da fotografia, do cinema e da reportagem. Contos de João Antonio, como os reunidos em O guardador, ou Ô, Copacabana, são contos ou reportagens? Ao escrevê-los, ele praticava literatura, ou jornalismo? O que dizer das magníficas crônicas de Rubem Braga, ou daquelas assinadas por Paulo Mendes Campos e Carlinhos Oliveira? Como fixar, com segurança, a fronteira entre a crônica e o conto? A mesma dúvida surge com a leitura das narrativas curtas de Ernest Hemingway. O velho e o mar, seu romance mais famoso, não é um conto – mas guarda mais rigor e tensão que a maioria de seus contos. O norte-americano Truman Capote chegava a dizer que escrevia "romances de não-ficção". Ironizava, assim, com a mania de classificar. Capote sempre surpreendeu, e até chocou, com a liberdade interior que se concedia.
Em vez de ajudar, clichês sempre atrapalham. Dão a impressão ligeira de que estabelecem uma ordem, uma classificação, um cânone. Mas, quase sempre, descartam aquilo que os contos (e a literatura) têm de melhor: a capacidade de perturbar e de surpreender. Então, quando você se sentar para escrever um conto, esqueça desses padrões, dessas classificações, e tente estabelecer, com firmeza e convicção, seu próprio rumo. Cada escritor cria sua tradição, cria seu passado, cria suas influências e cria, também, suas definições. Escrever é, antes de tudo, buscar a voz interior, isto é, perseguir aquela marca que distingue um escritor de todos os outros. E isso não se aprende, não se ensina, isso se encontra. Mais importante que saber o que fazer é saber o que não fazer. Daí a importância de afastar-se, antes de tudo, daquelas facilidades – repetições, fórmulas prontas, definições – que amordaçam e bloqueiam o caminho do escritor. É o trabalho mais difícil e de aparência menos nobre: saber o que um escritor não é, saber o que um escritor não quer. Porque cada escritor é, sempre, um escritor diferente. O que o define e legitima é a voz inconfundível. Uma página de Guimarães Rosa, ou de Clarice Lispector, ou de José Saramago, lançada ao vento, será sempre inconfundível. Ou o escritor busca essa marca, ou não merece ser chamado de escritor.

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A partir da próxima semana, começamos a trabalhar casos específicos. Para facilitar a vida dos alunos, tomarei por base os contos reunidos em Os cem melhores contos brasileiros, antologia organizada pelo crítico e poeta Ítalo Moriconi, para a editora Objetiva. Mas os contos citados ao longo desta primeira aula podem ser tomados, também, como pontos de partida para a leitura e a reflexão.